quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Ricardo Pais

"Acho que nunca quis ser uma figura gloriosa"
É um homem de Esquerda cujo protagonismo profissional aparece imiscuído na Direita laranja. Ricardo Pais surge quando surge um Governo PSD. Lida bem com isso. "Nos países civilizados, o que conta é a competência das pessoas". O encenador diz que o Teatro Nacional de São João, no Porto, que dirige pela segunda vez, "é uma praga". Mas já se habituou a aceitá-la como boa.Da primeira vez ficou cinco anos. Desta, ameaça sair no fim do ano, caso não lhe seja devolvida a autonomia financeira.

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva e José Miguel Gaspar publicada no Jornal de Notícias a 5 de Fevereiro de 2004)

Exceptuando, em 1995, no primeiro mandato no Teatro Nacional de São João (TNSJ), todos os cargos de relevo que tem desempenhado verificam-se em governos PSD. É uma coincidência?
Sim, mas foi precisamente nesse mandato que se fez obra. No Teatro D. Maria II , o tempo provou que os disparates que o Governo me propôs eram absurdos. Com Manuel Maria Carrilho nunca senti qualquer constrangimento. Depois da sua demissão, não ficaria nem mais um dia. Sentir-me-ia pior a trabalhar com uma pessoa como José Sasportes do que me sinto a trabalhar com pessoas civilizadas como Pedro Roseta e José Amaral Lopes.

Na altura, acusavam-no de beneficiar do estado de graça do Governo socialista. Continuando conotado com a Esquerda, beneficia de quê, agora?
Quando Teresa Gouveia me convidou para o D. Maria, fiquei perplexo.Comentei que esse era, provavelmente, o tipo de convite que o PS nunca me faria, sendo que eu era acompanhante de estrada do partido. Sempre tive a sensação de que as pessoas com disponibilidade para trabalhar este tipo de instituição são poucas.

É uma questão suprapartidária?
Não caberia na cabeça das pessoas perguntar aos cento e tal directores dos centros dramáticos de França qual a sua preferência partidária.A esmagadora maioria não está, de certeza absoluta, com o actual Governo. São socialistas ou para a esquerda disso. Nos países civilizados, o que conta é a competência das pessoas e o programa por elas proposto. Está muito acima da política partidária. Só em Portugal é que a questão se coloca dessa maneira.

Sente a opressão partidária?
Em circunstância alguma. De resto, a lei orgânica pela qual ainda nos regemos no TNSJ é muito específica. Tem um capítulo sobre a direcção, a isenção artística e a relação com a tutela. Sempre me pareceu que a coisa mais importante a assegurar é a liberdade artística.

O TNSJ perdeu a autonomia financeira no ano passado. Tenciona recuperá-la?
É uma exigência minha. O que foi negociado com o ministro da Cultura e com o primeiro ministro foi que, se até ao fim de 2003 a autonomia não regressasse, eu deixava o teatro. Ela não regressou ainda. E, até agora, tem passado a ideia de que a SA, criada para o D. Maria II, é uma forma de responder à questão da autonomia financeira. E que isso pode ser extrapolado directa e rapidamente para o S. João. Tenho dúvidas quanto à adaptação dessa lei para aqui. E o facto do Governo ter acedido a transformar uma empresa não lucrativa numa SA não quer dizer que aceda facilmente a fazer mais quatro ou cinco. Está em aberto rever a minha posição no TNSJ se a autonomia não for reposta brevemente.

São dois teatros nacionais, com contextos diferentes. O TNSJ foi aplaudido pela sua gestão, o TNDMII nem por isso. Não é estranho aplicar o mesmo modelo?
Poderá não ser. Também a lei orgânica era a mesma para os dois. Funcionou muito bem aqui e não funcionou lá em baixo. A questão dos modelos orgânicos é mais ou menos liminar, o que importa são as pessoas e o que elas conseguem fazer com isso. Reconheço que poucos colegas meus teriam a pachorra que nós temos para enfrentar o dia-a-dia administrativo de uma casa como esta. Até pode ser hilariante, se quisermos ver isto pelo lado do humor; mas é trágico do ponto de vista da eficácia. Nomeadamente, se quisermos pensar que, por sua vez, se calhar, o Estado até fazia melhor em não ter organismos que, de facto, emperra. Se quer pôr lá dinheiro, que o ponha de forma ágil. Não é porque se muda a lei orgânica que as coisas mudam.

A sua permanência no TNSJ está sempre presa pelo fio das suas exigências?
Não. Mesmo que estivesse, nunca o diria. Sou da maior lealdade e tenho grande respeito pela ideia de administração pública.Não me passaria pela cabeça jogar qualquer influência específica para conseguir meios extras na casa. Está bem estabelecido, desde o início, o que precisamos. Apesar das dificuldades, o que se fez no ano passado foi bem feito. Repôs-se airosamente o TNSJ no mapa, e contribuiu-se de forma decisiva para o desanuviamento do ambiente cultural, que estava de luto quando cá cheguei.

Querer controlar todos os processos passa também por alguma vaidade?
Nada está mais próximo da vaidade que a total insegurança. A vaidade é salutar porque normalmente implica mecanismos tremendos de autoquestionamento. Nessa perspectiva, não me importo que me considerem vaidoso. Como no meu trabalho sou a pessoa mais ferozmente crítica de mim próprio, quando me confronta com a ideia de vaidade o que me ocorre imediatamente é a angústia que sofro diariamente no meu questionamento. Penso que se calhar o faço para poder ser vaidoso. Para poder estimar o meu trabalho, que considero mais importante do que a mim próprio. O teatro é absolutamente fundamental, embora, na realidade, esteja farto de teatro. Tomara eu libertar-me disto e reformar-me. E fazer coisas completamente diferentes, se tivesse coragem e capacidade. Ou reformar-me pura e simplesmente, que era a coisa ideal. Mas o horizonte ético da minha vida é o teatro.

A sua exigência da autonomia ainda não foi cumprida. De que forma poderá reagir?
A única coisa que não quero é ir-me embora do TNSJ. Sempre bati com a porta muito rapidamente e com a maior das facilidades quando foi preciso. Mas estive aqui cinco anos da primeira vez, o que para mim foi um recorde. Tenho espírito de 'free-lancer', nunca fui corredor de fundo. Isto foi uma praga que me caiu em cima.E agora já a aceitei como boa. Portanto, a última coisa que quero é ir-me embora sem completar este ciclo de trabalho. No final de 2005, quando cessar o mandato, não tenho qualquer dúvida que vou embora.

A grande meta deste ciclo é a internacionalização?
Sempre foi um objectivo. Os governos dizem sempre que é um desígnio.Começamos a ser mais sistemáticos neste segundo mandato. Quando estive afastado, percebi que estávamos a dois passos de poder perceber a nossa relação com o estrangeiro.

Há uma viragem associada à "Castro"?
Claramente. A partir da participação da internacionalíssima Maria de Medeiros, o trabalho começou a ser feito de forma diferente.Há finalmente atenção regular aos nossos espectáculos.

Aposta no Brasil ou na Europa?
O Brasil é uma espécie de pesadelo de estimação. Quando lá vamos, o trabalho é recebido de maneira espantosa. Mas o contexto não é viável. A resposta a todas as tentativas que fizemos junto do ministro foi no sentido de que havia pouquíssimo dinheiro.Temos um capital adquirido no Brasil imenso. A classe tem um respeito incomensurável por nós, mas não pode fazer nada. Pensei: "Vamos fazer um intercâmbio, custe o que custar". Mas quando fizemos contas, percebemos que se continuássemos com o projecto, tendo entretanto sido reactivado o processo da UTE (União de Teatros da Europa), estávamos a arriscar parte substancial do orçamento numa altura de crise. Fizemos marcha atrás. Se tivéssemos garantias de financiamento para metade da operação, teríamos ido. Como já nos comprometemos com colegas do Brasil, vamos assumir cinco espectáculos, suportados por nós.

Cumprido esse pacote, inicia um retrocesso na operação de internacionalização com o Brasil e dedica-se à Europa, à UTE?
O Brasil manter-se-á sempre como uma proposta aberta. A Europa não é internacionalização porque nós somos Europa. Internacionalização seria o Brasil, apesar da língua. Uma ressalva: há grupos em Portugal que têm internacionalização assegurada há muitos anos, só que numa escala mais portátil. A escala a que trabalhamos é mais complicada. Mas organizar o PortoGoPhone em Março, e o festival UTE em Novembro, é um trabalho gigantesco. E se nós não conseguirmos o apoio pelo POC, previsto no orçamento, não sei como o vamos fazer o festival. É um risco.

A fasquia da qualidade teatral é mais elevada na Europa do que no Brasil?
Na Europa é diferente - não necessariamente mais elevado. Acho que na Europa se faz melhor teatro do que na América Latina.

Fazer parte da UTE é mais estimulante do que trabalhar no Brasil?
Não.
Porquê?
Sentir-me-ia mais estimulado a trabalhar com o Brasil. Acho mais divertido o desafio, por causa das diferenças culturais.A generosidade imensa daqueles actores é fantástica. Vi o Tony Ramos - um actor que nunca suportei nas telenovelas - e fiquei comovidíssimo. Mas o Brasil, apesar da grande diversidade de produtores independentes, tem uma imensa dose de teatro comercial.

Interessa-lhe reforçar o eixo Porto-Madrid-Barcelona?
Será um dos meus fetiches este ano. Gosto imenso do Alex Rigola, o jovem colega de Barcelona e gosto muito do Jose Luis Gomez.Já tinha tentado fazer qualquer coisa com o Teatro Nacional da Catalunha, mas nunca consegui. A ideia, lançada por mim, é fazermos anualmente três co-produções, entre a Abadia, o Lliure e o S.João, e que as peças girem pelas três cidades. A única regra é que sejam espectáculos que não nos tragam preocupações de sucesso.

Prometeu recuperar o PoNTI em 2004. Em Novembro abre o festival UTE. É uma substituição?
Espero que se chame UTE-PoNTI. O conceito será o de uma academia informal com uma componente formativa e de partilha de conhecimentos muito forte, e que vai muito para além dos espectáculos. O PoNTI será recuperado, mas, provavelmente, só em 2006. É difícil fazer um festival todos os anos.

A âncora para a internacionalização faz-se com dois espectáculos seus, "Castro" e "Um Hamlet a mais". Não é narcísico começar com duas encenações suas?
Não. O projecto da nossa atenção para a internacionalização será o 'showcase' "PortoGoPhone".
Já agora, faria a mesma pergunta ao Luís Miguel Cintra?

Que coincide com a reposição do seu "Hamlet"...
Sim, mas o "Hamlet" é reposto porque esteve quatro dias em cena.É uma questão de economia - é infinitamente menos caro repor do que montar um novo espectáculo de raiz. A "Castro" tinha ficado nove mil espectadores aquém na primeira exploração - houve muitas escolas que não conseguiram vir e a sala esteve sempre cheia. Manter as peças em repertório não é má política.

Como vê hoje o Teatro Municipal Rivoli: parece-lhe uma estrutura debilitada?
Custa-me usar essa expressão.

Que expressão usaria?
É uma estrutura em revisão. Está um bocadinho entre cadeiras.O Rivoli, como estrutura de produção, fez um trabalho interessantíssimo.Trabalho que está agora em revisão. E afirmou-se como um dos grandes equipamentos do país. É um parceiro muito importante na área da programação, produção e co-produção. O Rivoli e o Campo Alegre são estruturas que nós desejamos ardentemente que se fortifiquem ao longo dos anos, que não se debilitem. Senão, tira-se o TNSJ do jogo e pode ser um vazio muito grande.

Isso é prejudicial para a cidade, e mesmo para o Rivoli, enquanto espaço?
Vejo com alguma apreensão o futuro do Rivoli. Mas não tenho dúvida de que a Câmara está sensibilizada para o que vale a pena investir.Aliás, tenho que ressalvar uma coisa antes que haja confusão: as nossas relações com a Câmara do Porto são excelentes. Tudo o que solicitámos foi aceite com o maior entusiasmo; tudo o que propusemos, como a animação das praças do Teatro Carlos Alberto e do TNSJ durante o Verão. O Rivoli será um dos nossos palcos em Novembro e Dezembro, no festival da União de Teatros da Europa.

Parece-lhe que o Rivoli deveria ter outras ambições enquanto teatro municipal?
Parece-me que não vale a pena ter grandes teatros se não for para funcionar como grandes teatros. E isto deveria ser um imperativo nacional. Não há crise que justifique debilitar-se o funcionamento de uma casa. Pelo contrário. Activá-la é sempre reprodutivo, em última análise. É sempre lucrativo a médio e longo prazo.Essa apreensão prende-se com uma coisa que é uma preocupação minha de sempre: os teatros devem ter um nível de exigência muito grande para si próprios. O que me preocupa é que a programação do Rivoli durante anos era muito interessante, e que ela já esteja a ser menos interessante.

Transformar o Rivoli numa sala de aluguer pode ser uma forma de mascarar a ausência de política cultural da cidade?
O Centro Cultural de Belém fez muito boa programação ao longo dos anos, fazendo alugueres também. Não vejo inconveniente nenhum em uma sala municipal poder ser alugada. O que me custa é imaginar que isso se faça à custa de um projecto de programação personalizado, como foi o do Rivoli durante muito tempo. Disso terei muita pena.

O TNSJ é, em termos culturais, o pulmão da cidade?
Francamente, penso assim. Não teria a pretensão de o dizer, mas é assim que eu penso. Penso-o como uma coisa que ajuda a cidade a respirar, a abrir-se e a ser reconhecida.

Que estruturas estão no mesmo patamar do S. João?
Não está ninguém, porque os meios e a casa, que é uma casa modelar, não são fáceis de montar. Nem estão distribuídos assim à tripa-forra. A outra escala, pode dizer-se o mesmo do Teatro Viriato, em Viseu.

Onde termina a fronteira do S. João?
Temos trabalhado o mais possível para todo o lado. Eu sou muito respeitado na Praça da Batalha por pessoas que provavelmente nunca aqui entram enquanto espectadores. Mas acham que isto faz parte do património deles. A cidade revê-se, primeiro, em ter um teatro nacional; segundo, em ter um teatro nacional que funciona, que se tornou uma referência não só em Portugal como felizmente noutros sítios. As pessoas não têm ideia nenhuma de quão respeitados nós somos para além de Badajoz. Um teatro que faz teatro, e que o afirma como uma coisa vital e possível. Neste ano, que foi um ano mau, tivemos em média 250 espectadores por noite.

Confissões

'Quero deixar marca pessoal'
"Temos poucas oportunidades para deixar a nossa marca pessoal.Se não aproveitamos um sítios destes, quando é que vamos fazê-lo?" Ricardo Pais regressou ao S. João para descongelar tudo o que não tinha concretizado plenamente da primeira vez. "Se regressasse daqui a dez anos, faria o mesmo". É normal, argumenta. "Ficam sempre ideias penduradas".

'Não me acho unânime'
O que é que Ricardo Pais e Amália têm em comum? Um crescente sentido de unanimidade. Mesmo quem, porventura, não os apreciar, não o contestará. "Num país com um panorama relativamente pobre, as pessoas com um corpo de trabalho de anos acabam por ser mais ou menos aceites. Não quer dizer que haja unanimidade sobre o sentido da obra delas", contraria Ricardo Pais . E recusa a analogia."Amália era tecnicamente inquestionável, e eu não tenho a certeza que, como encenador, o seja". Desmonta a impossibilidade da comparação e desabafa: "Não creio que tenha gerado unaminidade à minha volta.Espero mesmo que não".

'Não gosto de dar entrevistas'
Por que é que Ricardo Pais não gosta de dar entrevistas? "Porque não me revejo transcrito". A sua rapidez demasiada no verbo explicará a questão - "a minha verborreia é um pesadelo para toda a gente" - , mas existirá outra, menos superficial: "Faz-me sentir completamente na mão do jornalista e isso custa-me muito". Precisará de sentir, aí como na encenação, que controla todo o processo? "Sim, também".

Rápidas
No seu disco "Grátis" cantou Bowie e Brel. Qual prefere?
Jacques Brel.

E porque escolheu "Time", de David Bowie?
Porque é das canções que melhor falam sobre o palco.

Não ter carreira de cantor é uma terrível desilusão?
Não.

Quem, como Shakespeare, é infinito?
Fernando Pessoa.

Continua a ter o pânico da memória?
Sim.

Voltará alguma vez ao palco como actor?
Infelizmente ninguém me convida...

O que lhe sugere o nome Carrilho?
O eng. Manuel Engrácia Carrilho foi um fantástico presidente de Câmara.

E o de José Sasportes?
Uma espécie de Rei Ubu liofilizado.

E Pedro Roseta?
Uma enorme gentileza.

Qual a última criação que o comoveu?
"Jardim de Inverno", de Olga Roriz.

Qual o último livro que deixou a meio?
Deixo-os frequentemente a meio. Estou a ler Musil, finalmente.

Perfil

"Sempre fui acusado de criar acontecimentos em teatro". Ricardo Pais, nascido em 1945, formou-se em Direito. Terá sido na Universidade de Coimbra, ao iniciar-se como membro do CITAC, que descobriu que o teatro seria o horizonte ético da sua vida. "Como criador, nunca me hei-de reformar, por mais que diga que não me apetece fazer mais teatro". Viveu demasiados anos com o estigma de 'enfant terrible'. É hoje um dos encenadores mais respeitados do país. Já leccionou na Escola Superior de Cinema de Lisboa (75-83), foi director do Teatro D. Maria II (89-90) e comissário para Coimbra Capital do Teatro (92-93). Entre 95 e 2000 dirigiu o Teatro Nacional S. João. Regressou a casa há pouco mais de um ano. Tem mandato até 2005. Que figura gloriosa gostaria de ser se o ousasse? "Acho que nunca quis ser uma figura gloriosa".