domingo, julho 04, 2004

Fernanda Torres


"Poucas vezes fui aplaudida como em Portugal"

Regressa aos palcos portugueses com uma peça tão controversa como a que apresentou há mais de dez anos, em Lisboa. Em "The flash e the crash days", a brasileira Fernanda Torres masturbava-se em palco na companhia da mãe, a lendária Fernanda Montenegro; em "A casa dos budas ditosos" (em cena hoje e amanhã no Teatro S. João, no Porto) representa uma mulher, de 68 anos, que decide doar ao Mundo o relato da sua preenchidíssima vida sexual. "Não queria ter vivido o que ela viveu, mas admiro a inteligência dela". Em entrevista ao JN, a actriz - uma das mais premiadas do Brasil -, encantada com a receptividade nacional, conta como nasceu a peça, explica o que é o 'sit down theatre', e lança uma pergunta: "Você está satisfeito com a sua vida sexual?".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 4 de Junho de 2004)

O encenador de "Budas ditosos" , Domingos de Oliveira, confessou tê-la escolhido por ser uma mulher realizada, que casou e teve filhos. Se o seu trajecto pessoal tivesse sido diferente, não teria maturidade para dizer este texto?
Não saberia fazer o papel. Ser actor é uma profissão bacana porque a vida nos ajuda a melhorar. Quando você passa por algumas emoções na vida, pode usá-las na profissão.Há dez anos seria absolutamente ignorante em muitos aspectos da personagem, sobretudo no final, quando ela fala que tem um aneurisma e que a morte está perto. Tenho medo que isso me possa acontecer [bate na mesa], mas não tenho isso como uma realidade.Precisei viver para tomar conta de um papel assim.

Mas não terá a ver também com uma insegurança que, supostamente, diminui ao longo da vida?
O actor, se caminha no sentido certo, se torna menos vaidoso.Quando você é novo, fica muito preocupado em saber se está bem.Quando fica mais velho, já foi bem, mal, vaiado, aplaudido. Aí percebe que quanto menos pensar melhor. Tenho orgulho neste trabalho porque não o fiz com vaidade - não trabalhei nele para rebentar.E como passei a escrever roteiros para cinema, o ensaio foi quase um ensaio desses roteiros. Não foi daqueles em que o encenador diz: 'falta garra'; "falta emoção", esse tipo de conselhos horrendos que não ajudam nada o actor.

Durante os ensaios, o encenador convocou outras pessoas para avaliarem o poder de choque da peça...
O Domingos, um cara muito sensível, olhou para mim e disse: "Temos que chamar amigos para assistir porque já não acho mais nada chocante. Temos que começar a ter ideia do que isto provoca".Antes de ir para S. Paulo, onde estreei, ensaiamos em favelas. Só agora ia começar a fazer teatros nacionais. Representei só nos Centros Culturais do Banco do Brasil e dos Correios. Teatros menores. Amo estrear pequeno; odeio estrear com pompa. Superprodução no Brasil não dá certo. Os dois primeiros teatros reais são esses aqui, em Portugal.

Costuma dizer que teatros grandes fazem lembrar teatros gregos.Prefere sempre salas onde fica perto do público?
É verdade, mas achei incrível fazer a peça no Teatro D. Maria, em Lisboa. Criou-se uma solenidade, que é incrível para este espectáculo. É uma peça muito séria. É um posicionamento filosófico, grego, o desta mulher diante da vida. Ela ousa cumprir a vocação libertina dela. Diz às pessoas que não há pecado na luxúria, que a luxúria é uma forma de libertação. E lança a grande pergunta: "Você é feliz? Como está sua vida sexual?" As pessoas saem do teatro com essa pergunta. Quando se faz isso num teatro sagrado, a pergunta atinge um nível de sagrado incrível.

Também já não fica chocada com nada?
Nunca fiquei chocada com o livro. Não vivi o que ela viveu, mas sempre concordei com ela. E acho que as pessoas saem da peça concordando também. O Domingos não quis fazer um espectáculo agressivo. Não quis dizer às pessoas que são caretas porque não têm esta vida. A personagem não é um exemplo; é um meio de libertação.Como o tom não é chocante, as pessoas aceitam.

Do ponto de vista da representação, depois de ter feito "The flash e crash days", em que se masturbava com a sua mãe, Fernanda Montenegro, nada poderá ser um desafio maior?
Aí era totalmente o oposto. Essa peça era de um provocador, Gerald Thomas. A cena não era para chocar o público, mas para me chocar a mim e à mamãe. Ele queria ver se nós topávamos, e nós topamos.Foi incrível porque ele relaxou e a peça ganhou em comicidade.Depois da masturbação, a peça era uma hora em que eu tentava matar minha mãe e ela tentava me matar.

São os encenadores que criam desafios maiores ou menores?
De certa forma. O Domingos começou o ensaio dizendo: "A racionalidade é o único caminho para a transcendência" [imita a voz dele].Óptimo, pensei. Ele não vai mandar me arrastar, vai ser na consciência.Mas o grande mestre para essa peça foi Spaldin Gray, que vi em Nova Iorque. Ele contava a própria vida sentado numa mesa com um microfone e um copo de água: as primeiras férias, o momento em que a mãe se matou, a experiência no Cambodja. Esse cara me marcou mais que Peter Brooks ou Bob Wilson. Matou-se este ano.Acho que ele inventou um género, o 'sit down theater'. Quando o vi, pensei que amaria fazer aquilo, mas a minha vida não dava.Quando Domingos me chamou pensei: "Finalmente, a vida de alguém que vale a pena contar". E com texto do Ubaldo, que é um génio.Essa é uma experiência 'spaldiana'.

Apesar da abertura de espírito dos brasileiros, houve um momento em que sentiu necessidade de agradecer a maturidade dos empresários culturais do Brasil por terem arriscado patrocinar esta peça.
Claro. A mesma coisa digo do João Lagarto e do Ricardo Pais que me botaram no D. Maria e no S. João. É preciso ter coragem. Por exemplo, fazer tournée no Brasil é complicado porque o bilhete aéreo é caro. Fomos a várias companhias aéreas e todo o mundo foi dizendo "não". Aí, alguém falou: "Gente, acorda! Tem um moça na peça que é sapatona e cheira cocaína". Nenhuma empresa vai aliar o seu nome a essa peça". Respeito. Não acho que elas foram retrógradas. Acho incrível que outras aceitem patrocinar. Aqui, também sabia que era perigoso, mas depois da receptividade que tive em Lisboa, relaxei.

A recepção em Portugal, tradicionalmente um país conservador, está a ser positiva?
Inacreditável. Poucas vezes tive uma ovação na vida como em Lisboa.Acabei o último dia chorando. Aliás, o maior elogio do livro é ao povo português. É um elogio torto, picante...

Diz que "os portugueses trepam bem"...
Exactamente. Tinha medo de dizer. Mas é lindo, porque no Brasil quando falava era em relação aos nossos colonizadores. Quando cheguei e, finalmente, disse a frase a quem a merece ouvir, os portugueses receberam com humor. Foi fantástico. É um público muito inteligente.

Usa o verbo 'trepar', que, à partida, as pessoas poderiam não entender...
Por isso, rolou uma pequena tradução nos momentos em que sentia que o sentido se perdia. Fui traduzindo, assim, 'brochar' por 'murchar'. Aliás, foi engraçado porque a cocaína não foi um fenómeno na plateia em Portugal. No Brasil foi. Cá, houve mais reacções do público quando falei: "Ele sofria de ejaculação prematura..." [risos]

O livro foi proibido em alguns países. A Fernanda, pelo contrário, é uma actriz consensual. Sente que, de alguma forma, salvou o texto?
O meu trabalho é inteiramente fruto da grandeza do texto. Ubaldo é uma espécie de puro sangue que nos dão para cavalgar. O texto é uma espécie de fundamento certo que tenho todas as noites como se fosse uma auto-estrada para correr com um Porsche. Já era louca por Ubaldo, mas depois dessa experiência, fiquei devota dele. Ele é um erudito chulo, e isso é uma mistura explosiva.

Ubaldo está ao nível de Henry Miller, de Hilda Hilst?
São diferentes. Há vários semelhantes: Bataille, Sade, o próprio Henry Miller, apesar de ser mais 'cool'. O que distingue Ubaldo é a Bahia, porque tem uma sexualidade inteiramente nova para o Mundo. Só um baiano poderia criar a mulher da peça. A grande diferença no livro e na sexualidade baiana é a ausência de culpa que eu vejo no Sade, e na própria Hilda, porque é perverso.

Mas Hilda Hilst usa o sadomasoquismo, o sexo em grupo, o encesto também como pretexto para questões mais densas.
Pois, mas no Ubaldo é só sexo mesmo, sem filosofias. E sobretudo o sexo baiano.

Mas não chega a ser uma peça pornográfica?
É uma peça filosófico-pornográfica. Ela diz: "Minha intenção é provocar tesão". E esse é o objectivo da pornografia. A grande diferença é, mais uma vez, nas palavras de Domingos: "O sexo sem sentimento é uma invenção da sociedade de consumo". Pornografia não tem sentimento. Nesse sentido, não é pornográfica, porque todos os actos de sexo são actos de amor para ela. Ela vai morrer e sente necessidade de deixar esse legado para a humanidade: o sexo é um caminho de amor e libertação. Não gostaria de ter tido a vida dela, mas tenho admiração pela inteligência dela.

Disse que a peça não funcionaria bem na terceira pessoa. Ao dizer o texto, sente que essa mulher poderia ser a polémica Catherine Millet?
Aquela que deu para todo Mundo? Não sei. É Ubaldo quem diz que falar de sexo na terceira pessoa fica formal. Fica: "Introduziu o pénis erecto na sua vulva entumecida de prazer". Ele achava mal, por isso criou o artifício da mulher que deixou as fitas na casa dele, que fez isso ser um texto oral que se presta a teatro.

Será também por aí que se justifica a escolha de uma actriz bastante mais nova do que a personagem, que tem 68 anos?
Eu não me chamaria! [risos] Mas sim, é por isso e por ela ser baiana.

Tinha medo de não conseguir imitar o sotaque baiano?
Entrei em pânico. Ser baiano é outra nacionalidade. Mas há uma frase em que ela diz: "Imagina o eu era quando tinha entre 35 e 40 e poucos anos, na minha opinião, a melhor idade na vida de qualquer mulher". A partir daquela frase entendi que quem fala é o ideal dela. Não é realismo, é a figura mítica dela congelada no tempo. Isso criou uma personagem louca. Depois vi um vídeo dos anos 70 com Mariza, uma cantora de fossa, louca, que foi fundamental. Isso virou minha bíblia. Este espectáculo é Spalding Gray e Mariza.

Foi a paixão pelo texto que a fez pedir ao encenador que esperasse por si enquanto gravava a série televisiva "Os normais"?
Estava a meio da série e com um filho de um ano. Não tinha condições. Mas aprendi que nenhuma peça de teatro se faz com menos de um ano de projecto. Não é ensaiando; é amadurecendo. Gosto de representar autores brasileiros ou clássicos. Tenho nervoso de comprar peças na Broadway. Prefiro o grande sucesso da França. Por isso, pedi para ele esperar.

Ubaldo Ribeiro não interferiu no ensaio por ter consciência que peça e texto não tinham que ser a mesma coisa. Quais são as diferenças entre os dois?
Ele escreveu o livro como um pai generoso que deixa os filhos irem. O livro é mais detalhista em relação às práticas sexuais. Na peça é mais claro o movimento dos amores da vida dela. Hoje, de cada vez que volto ao livro, me dá vontade de colocar tanta frase...

Vai em digressão pela Europa?
Não, volto para o Brasil. Vou me internar no Nordeste para fazer um filme dirigido pelo meu marido, Andrucha. Só um louco pega sua mulher e sua sogra para esquentar no deserto do Nordeste.Se o nosso casamento sobreviver a isto, sobreviveremos a tudo.Em Setembro, volto com os budas no Brasil e, talvez, em Espanha.

O filme é a 'Casa de areia'?
Sim, é a história de uma mulher que passa 100 anos num areal cavando areia para não enterrar a casa dela. É um pouco sobre os escravos do Brasil. Um filme muito impressionista. Já era louca por Ubaldo, mas depois dessa experiência fiquei devota dele. É um erudito-chulo, e isso é uma mistura explosiva."