domingo, agosto 08, 2004

Raquel Freire



"Lei do cinema insulta o povo português"

"Gostava que o Mundo fosse melhor, e quando filmo, isso está lá". Seja na contestação da hermética academia de Coimbra, na forma conservadora de olhar a gravidez ou na condenação das mulheres que praticam aborto. Raquel Freire, cineasta, 30 anos, fala com os olhos a arder. Como a vida sobre a qual escreve e realiza. Ela é os filmes dela. E não tem medo de o assumir. "A minha intenção nunca é não chocar", avisa, em entrevista, ao JN a realizadora que trocou o curso de Direito pela paixão do cinema.


(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 8 de Agosto de 2004)

Está na véspera de ir a Amsterdão realizar um documentário sobre o aborto em Portugal. Porquê filmar na Holanda uma realidade portuguesa?

Há muito tempo que queria trabalhar esse tema; nunca pensei fazê-lo já. Aconteceu conhecer a Rebecca Gomperts - médica e fundadora da organização 'Womens on Waves', famosa mundialmente como o 'barco do aborto' -, e tornou-se um imperativo. Ela estava em Setúbal a assistir ao julgamento de mulheres julgadas pela prática de aborto. Houve uma empatia e decidimos, eu e a Dina Campos, avançar imediatamente para um documentário. Vamos a Amesterdão filmar a Rebecca em acção. Ela é a grande heroína, a nível internacional, a fazer alguma coisa. Quando voltarmos, vamos filmar as mulheres portuguesas.


A 'Women on Waves" apresentou queixa contra o Estado português?

Claro. Tem vários advogados que representam as mulheres portuguesas em tribunais internacionais. Há quatro países que condenam o aborto: Portugal, Irlanda, Polónia e Malta. Portugal é o único que leva mulheres a tribunal e as condena. Nos outros, a lei existe, mas não é aplicada.


A Raquel também já assinou petições a favor do aborto...

Sou pela legalização do aborto e pela não criminalização das mulheres. A cada cinco minutos morre uma mulher no Mundo vítima de aborto clandestino. Nos últimos anos, em Portugal, morreram 100 mulheres. Pode parecer uma realidade distante, mas não é. Está à nossa volta. É só abrir os olhos. É um preconceito burguês pensar que qualquer pessoa tem 500 euros para ir a Espanha. Não só não tem, como tem o direito de o fazer no seu país.


A sua estreia aconteceu em 1999, com "Rio Vermelho" (acaba de sair em DVD), justamente sobre a maternidade.

Todas as pessoas têm obsessões. Uma das minhas angústias era a gravidez. Fiz essa curta e dois anos depois tive o meu filho.


Mostra mulheres grávidas de uma forma pouco comum...

Em Portugal, continuamos com a visão judaico-cristã de que há a Maria e a Madalena. A Maria que é santa, virgem, assexuada; a Madalena é pecadora, sexual. Enquanto não conseguirmos ver a mulher como um ser total, enquanto as mulheres não se convencerem que não têm que responder a modelos pré-estabelecidos e que podem ser que elas quiserem, estarão presas. Quis mostrar mulheres livres. E associar a maternidade ao prazer sexual, à beleza, à feminilidade e não à quase obrigação que há de que a mulher grávida é casta, sendo-lhe negado o prazer.


Apesar de viver em Lisboa filma recorrentemente no Porto. Qual a relação que mantém com a cidade que deixou aos 18 anos?

A minha relação com tudo o que filmo parte sempre da intuição, da emoção e da afectividade. As minhas memórias afectivas são no Porto e em Gaia. Nas duas margens do rio onde cresci. Só este ano consegui escrever um argumento para uma longa metragem em Lisboa. Mesmo assim vim filmar 15 dias ao Porto.


Escreve todos filmes que realiza, e fá-lo desde pequena...

Comecei a inventar histórias quando ainda não sabia escrever. Os meus pais obrigavam-me a ir para a cama às nove e meia, e não conseguia dormir. Ficava na cama às escuras a inventar histórias que continuavam durante meses. Quando terminavam ficava triste e começava outra. Ainda hoje faço isso. Há um lado muito grande de solidão nisto.


"Filme sem câmara", que acabou de rodar no Porto, reflecte essa solidão?

Mudei-lhe o nome para "A vida queima". É sobre uma mulher, realizadora, que vive sozinha. Tem um filho e enfrenta as dificuldades diárias das mulheres de 30 anos que neste país tentam concretizar os seus sonhos não segundo as regras impostas pela sociedade, mas segundo as suas próprias regras. Faz imensas asneiras, queima-se muitas vezes, mas tem uma sede insaciável de viver. É uma personagem um bocadinho suicida porque tem a ilusão que um dia há-se conseguir fazer um filme que vai realmente mudar o Mundo. Tem um lado ingénuo também. Ela já teve o amor da vida dela e já o perdeu. Há um lado por vezes desesperado, porque a vida não é o que ela estava à espera. E há um lado excessivo em tudo. Isso vai queimá-la, porque a vida queima.


Essa mulher é a Raquel?

Essa personagem foi criada com sangue, suor e lágrimas. É a mais confessional que escrevi até hoje. As semelhanças são óbvias. Vai ser chocante, sobretudo para quem me conhece. O filme foi feito sem dinheiro, sem produtor, com uma equipa muito generosa, que dedicou três meses da sua vida a realizar este sonho. Não é o meu filme, é o nosso filme. Tem um lado muito íntimo. Foi o meu projecto mais doloroso. Um milagre.


Solicitou figurantes na Internet. Qual foi a resposta?

Uma surpresa. Recebi dezenas de emails e telefonemas de pessoas que não conheço a oferecerem-se. Foi espantoso.


Foi a primeira vez que arriscou fazer um filme sem nada?

Depois de estar dois anos à procura de financiamento para filmar uma trilogia e não conseguir, decidi que não podia esperar mais. Não conseguia conti- nuar calada e a única forma que tenho de falar é filmando. Então, imaginei um projecto que pudesse ser feito sem dinheiro, sem produtor. Quando toda a gente disse que era impossível, eu disse é possível. E se fosse impossível iria filmar essa impossibilidade. Toda a gente trabalhou de graça e algumas pessoas pagaram para trabalhar. O câmara e director de fotografia, que é um jovem realizador brasileiro, Tomás Resende, pagou a viagem dele do Brasil para cá. Agora preciso de dinheiro para o montar e não tenho. Mas nunca deixei nenhum filme incompleto, não há-de ser este.


Reclama uma linguagem própria no cinema, mas nunca o estudou. Sente que agora lhe faz falta?O cinema aprende-se fazendo. Não quero que me digam quais são os caminhos; sou eu que faço e descubro. E a minha forma de filmar é a minha, e ninguém me pode dizer qual é, sou eu. Isto tem um lado completamente arrogante, claro. Para ser realizador de cinema é preciso esta arrogância no sentido em que se acredita que se tem alguma coisa nova para dizer ao Mundo, ou que se tem uma forma nova de se dizer.


A sua produtora, Terra Filmes, continua em actividade?

Infelizmente, tive que a suspender por impossibilidades económicas.A Porto 2001 continua a dever-me 5000 contos. Já a meti em tribunal, mas é uma entidade sem rosto. Estão sempre a mudar de advogados, mas na-da me fará parar. Só a morte.


O que a fez desaprovar a nova lei do cinema?

Mistura produção audiovisual com cinema. Faz falta ficção de qualidade em Portugal - não me revejo nos produtos de ficção nacionais -, mas isso não pode tirar financiamento ao cinema.Neste projecto de lei as coisas estão misturadas. E não se resolveu o problema da distribuição. Em todos os países da Europa e no Brasil, os distribuidores têm de passar cinema na- cional. Em Portugal desceu para 60% a taxa de exibição. É um contra-senso. E um insulto ao povo português.


O novo Governo representa alguma espécie de esperança?

Não conheço a nova ministra, mas gostava que me recebesse. Preocupa-me que o programa da Cultura do Governo tenha uma visão ultrapassada do que é a Cultura. A Cultura são os museus, o património e as obras literárias escritas pelo menos há 300 anos. A Cultura não é isso: é viva, somos nós que a fazemos todos os dias. Não apoiar os criadores é um suicídio nacional. O Estado demite-se desse papel, e ainda por cima ridiculariza os seus criadores. A verdade é que o público não adere ao cinema português.


De quem é a culpa?

É um problema de distribuição e promoção. O "Rasganço" foi o filme de que o Paulo Branco fez mais cópias. Estreou no país todo e, nesse ano, foi o segundo filme português mais visto, com apenas três semanas de exibição. O seguinte teve 11 semanas e, apenas, mais mil espectadores. O 'Rasganço' saiu para entrar o 'Harry Potter' e o 'Senhor dos anéis'.


Vive do cinema?

Não sei viver de outra forma; tenho sempre projectos. Se não estou a filmar estou a escrever. E quando me dizem que é difícil filmar sem dinheiro, respondo que difícil foi para a minha avó sobreviver à morte de quatro filhos e continuar a sorrir. Não faço a mínima ideia de como vou sobreviver até Janeiro. Mas sei que hei-de conseguir.


"Precisava filmar esse rasganço"


Inconformada, Raquel Freire usa o cinema para falar. Desta vez sobre o aborto em Portugal. Inventava histórias quando ainda não sabia escrever.


Continua muito associada ao polémico "Rasganço". Aquela controvérsia foi pensada?

A minha intenção nunca é não chocar; é pôr em causa a realidade. Gostava que o mundo fosse melhor, e quando filmo isso está lá. Criei sobre um universo que conhecia profundamente, que é Coimbra, onde vivi cinco anos. Coimbra, que é aquela espécie de estufa onde criam as elites governamentais. É um meio fechado, pequeno e pouco progressista. Os jovens estão lá para poder sonhar que podem ser tudo o que quiserem. E eu precisava filmar esse rasganço, essa perda da inocência. Chocou-me a falta de visão das pessoas ao criticarem o filme. Não perceberam que aquilo era um objecto artístico.


Como foi a sua vida académica?

Era conhecida como a 'generala vermelha'...Vestia-me de vermelho, era muito nova, e tinha pertencido até aos 17 anos à Juventude Comunista.Tinha posições de Esquerda em pleno cavaquismo. Os meus pais estudaram em Coimbra, participaram nas lutas académicas de 69. Tinha uma imagem de Coimbra de grande liberdade, rebeldia, intervencionismo político. De ser um espaço privilegiado para os jovens poderem crescer.


Sente que cumpriu a sua missão em Coimbra?

Lutei por tudo aquilo em que acreditava. Digo isto de consciência tranquila porque nenhum de nós tirou dividendos políticos daí. Não queríamos poder. Não era para isso que lá estávamos. Tínhamos a ingenuidade dos verdes anos. Quando terminou, um amigo ofereceu-nos um livro do 25 de Abril a dizer "Não tivemos cravos mas também fizemos a revolução". Hoje, quando vejo o grande atraso no Ensino Superior, não tenho a sensação de falhanço. Conseguimos mudar muita coisa, e não foi só termos deitado três ministros abaixo.


Confissão


Queria seguir Belas Artes. Mas aos 14 anos anos disseram-me que não seria o Picasso. E desisti. Fiz dança, fotografia. Escolhi Direito para entender as regras do Mundo. A cama é o meu olho sobre o Mundo. Os meus filmes são os meus sonhos e os das pessoas que estão à minha volta.Quando filmo uma curta-metragem, é porque é isso que quero fazer. Há músicas das quais gosto muito que têm apenas três minutos. E são perfeitas assim.