sábado, outubro 23, 2004

António Barreto

"Somos pequenos,
pobres e incultos"


António Barreto recebe depois de amanhã prémio da Fundação alemã Alfred Toepfer F.V.S.Crítico feroz do sistema político, pautado por excesso de demagogia, e do actual primeiro-ministro, António Barreto garante que "Santana Lopes é um homem que não sabe o que quer fazer." À Esquerda, o panorama não será melhor. "Não sinto uma força determinada e programática no Partido Socialista de Sócrates". Seguro de que o diagnóstico do país não é favorável, o sociólogo aponta a justiça como a primeira reforma urgente a pôr em curso. Na véspera de receber o Prémio Montaigne, destinado a consagrar um pensamento supranacional e de esforços humanitários, António Barreto, defensor reconhecido de uma Europa plural, confessou encontrar na adesão da Turquia à União Europeia o travão para o federalismo.


(Entrevista de Helena Teixeira da Silva e António José Teixeira publicada no Jornal de Notícias a 23 de Outubro de 2004)

O prémio Montaigne acrescenta-lhe o quê?

Sabe quem ganhou o primeiro prémio Montaigne? O homem que mais admiro no pensamento europeu, Raymond Aron.É uma enorme honra, que não tenho a certeza se mereço. Desde que regressei a Portugal - vivi 12 anos na Suíça -, a minha obsessão, do ponto de vista de estudo, foi sempre a sociedade portuguesa.Mas a natureza deste prémio não seria reconhecer alguém que se ocupa de um assunto particular, nacional; ele fala de património cultural europeu e de tradição europeia. A Europa que eu gosto é a que reconhece as culturas.


Naturalmente, não precisava ter vivido na Suíça para se sentir europeu, mas foi com essa experiência que criou a ideia da Europa mais plural?
Não concordo. Se há coisa, na minha vida pessoal, que agradeço, foi ter podido passar mais de uma década lá fora. Fez-me perceber o que gostava e o que não gostava em Portugal, e ajudou-me a perceber os outros. Defendo uma Europa plural, que aceita quem se ocupa mais da sua tradição cultural nacional, não sendo nacionalista - o que não sou em nenhum grau.

O objecto do prémio prende-se com o seu pensamento político, que publica semanalmente, ou com o estudo sociológico que exerce na universidade?
O júri falou simultaneamente do estudo da sociologia e da minha colaboração frequente nos media, referindo a minha independência de espírito. Talvez não saiba que os momentos mais dramáticos da existência de alguém é tentar fazer duas coisas que não são completamente compatíveis.

Há um significado acrescido por Montaigne ser um dos pensadores que mais admira?
Tem. Sendo francês até ao tutano, e tendo sido presidente da Câmara de Bordéus, que é a cidade do vinho, conseguiu o que nunca conseguirei: elevar-se acima da contingência da circunstância social e cultural da sua vida. Tentou manter-se ligado à natureza humana. É um esforço excepcional. Eu faço o contrário, tenho uma costela positivista.

Têm em comum o cepticismo?
Sim. Mas se há alguma coisa que olho como identificação é quando ele viaja, em espírito ou na realidade. Percebe-se nele o fundo comum aos homens europeus: pluralidade radical. Esta é a minha Europa; não é o federalismo europeu, que destrói a pluralidade das culturas. A Europa que está em construção pode ser travada com a não aprovação da Constituição. Ao contrário do que se pensa, as coisas nunca são irreversíveis na vida: as nações vão por certos caminhos e de repente podem fazer marcha atrás.

Essa marcha atrás não é a posição em que já estamos, após o alargamento, o 11 de Setembro, a guerra do Iraque...
É possível que se tenha começado uma fase nova. Ao contrário de quase toda a gente que conheço, sou favorável à adesão da Turquia à União Europeia (UE).

A Turquia pode ser o travão?
Se entrar, significa que a Europa federal não se fez.

Como deve ficar a Europa? Tem que ser uma UE federal ou há alternativa?
Dentro de uma Europa, que é quase o continente europeu todo, não vejo por que razão não poderá haver, dentro dos 25 ou dos 30, novas formas de associação parcelares. Se houver uma tendência para que os países escandinavos estabeleçam entre eles algo mais do que com os outros, como já acontece com a moeda única, não cria necessariamente uma contradição com os restantes países. Por isso, penso que a Constituição deveria ser recusada. Tenho esperança que haja povos que a bloqueiem. A Constituição estabelece um quadro de fixidez que será depois extremamente difícil de corrigir.

É o primeiro sociólogo português a receber este prémio. A sociologia é um instrumento tido em conta para a acção política?
Infelizmente, a investigação sociológica informa muito pouco a decisão do poder. Quando estive na vida política, houve importantíssimas decisões tomadas sem que se tivesse em conta a informação existente. Foi o caso da legislação sobre as propinas, uma decisão tomada pelo faro. A maior parte das decisões continuam a ser faro. Há três exemplos importantíssimos: agricultura, pesca e floresta. Até 2003 funcionava-se com os resultados para a população portuguesa do Censos de 1991, que foi publicado em 93, corrigido em 95. Entretanto já havia mais meio milhão de pessoas em Portugal. No domínio da Segurança Social, não existe estudo apurado da evolução demográfica, dos residentes, dos naturalizados e dos estrangeiros. No orçamento é a mesma coisa. Estou convencido que algumas das últimas decisões - benefícios fiscais, rendimento mínimo garantido - são tomadas exclusivamente em função de uma margem pequeníssima de liberdade de acção que tem o ministro das Finanças, porque o orçamento está apanhado com a função pública, a dívida e as transferências sociais.

A imagem que o espelho nos devolve enquanto povo tem-nos levado a melhorar ou à depressão?
Talvez tenha ajudado mais à depressão. Nestas três décadas houve uma euforia. Portugal foi promovido a país de primeira, aderiu à UE, criou o Euro, passou a ser respeitado, deixou de ter inimigos, deixou de haver países que cortassem relações com Portugal. O país terminou a guerra, descolonizou, criou a democracia. É quase comovedor ver o que os portugueses conseguiram fazer nos últimos 30 anos. Fizeram de Portugal uma sociedade plural sem que houvesse sequelas trágicas. Nos diagnósticos, o resultado parece positivo, mas continuamos a deprimir com facilidade. Primeiro, porque os outros também cresceram. Depois porque a euforia é como as paixões: cegou o facto de sermos pequenos, pobres, periféricos, incultos. Não temos riqueza importante: nem agricultura, nem petróleo, nem mineral. A euforia criou excesso de expectativas. E o país não chega lá. O fim da euforia começou nos últimos dez anos com a percepção de que tudo é muito mais lento. Aquilo que se tinha conseguido é insuficiente. Redescobrimos a nossa desorganização, a nossa falta de racionalidade, a nossa incultura profundíssima, a nossa insuficiência na formação.
Isto é muito pessimista?
Acho que não, é uma tentativa de realismo. Há dias, estava a ler as entrevistas de Medina Carreira e de Silva Lopes, que diziam: "Parece que não há ponta por onde pegar." É melhor que nós saibamos onde estão as pontas para tentar pegar nelas.

Encontra alguma ponta?
Primeiro, é preciso acabar com a demagogia. Há muitos anos que não vejo os políticos portugueses mostrarem o diagnóstico exacto da realidade portuguesa. O défice continua, a produtividade não sobe o que deve, o défice externo continua, o défice público, apesar das engenharias, das aldrabices orçamentais que se fazem, continua.
Porque é que os políticos não informam melhor, não fazem a pedagogia do diagnóstico, que é de desastre quase eminente?
Na política, as minhas duas únicas esperanças limitam-se a alterar o sistema eleitoral, que condena a sociedade política, a participação e o interesse político. E obrigava a que todos os ministros fossem eleitos [deputados]. Depois, a crise na justiça, que faz com que a sociedade esteja sistematicamente votada ao improviso, à lei do mais forte. A justiça é o instrumento que moralmente mais contribui para a formação do cidadão. O próprio pilar da democracia é afectado pelo sistema judicial não funcionar. Não teremos cidadania nem justiça social se a justiça não for reformada.

Se Portugal avançou de forma imensurável nos primeiros 30 anos de democracia e ainda assim ficou atrasado, e se dificilmente conseguirá igualar esse ritmo de progressão, o futuro antecipa-se frágil?
Subscrevo. Portugal chegou a crescer num só ano 11%, no tempo de Salazar. Bagão Félix fica radiante se crescermos 1,4%. O futuro só poderá melhorar se se reformar a educação e a justiça.Isto não se resolve em três anos.

Em 1992, dizia que o semi-presidencialismo era "mais fértil em conflitos políticos do que em equilíbrios institucionais" e que "no futuro, será pior". Hoje, continua a pensar o mesmo?
Continua a ser um sistema híbrido. O Presidente da República (PR) não depende só da personalidade, mas também do momento. O último gesto de Jorge Sampaio foi de primado parlamentar, na nomeação deste primeiro-ministro. Houve quem o acusasse de ser ilegítima e ilegal. Mentira. Eu teria feito o mesmo: nas actuais circunstâncias políticas portuguesas, prefiro sublinhar o lado parlamentar do regime. Jorge Sampaio criou uma tradição nova, que é o Governo sob vigilância. E já alertou para cinco casos, todos eles importantíssimos - educação, saúde, défice, despesa pública e justiça -, dando sempre um tom de vigilância apertada que quase obriga à acção. Não sei se vai dissolver; acho que nem ele sabe. Sampaio já disse que este Governo é tão legítimo como qualquer outro...Compreendo. Quer estar totalmente livre na sua decisão de dissolver, ou não, até Junho. Não quer que esteja presente a chantagem que o primeiro-ministro já fez, nem o contrário.

Já teve motivos para dissolver o Parlamento?
Tendo dado posse a este Governo, não creio que o que aconteceu até agora seja suficiente para fundamentar a dissolução. O último facto pré-político, o caso Marcelo Rebelo de Sousa, é muito grave, mas não tem relevância que justifique a dissolução. Os casos acumulam-se, é certo.

Defende a não dissolução, apesar de já ter dito, sobre o primeiro-ministro, que "não tem projectos, tem invenções"?
Sim, porque trata-se de dissolver o parlamento e não o primeiro-ministro (PM).

E se fosse possível manter o Parlamento e destituir o PM?
Agora é tarde. Em Junho teria sido possível. Jorge Sampaio podia ter dito: "Quero refazer o Governo com a vossa maioria parlamentar, proponham-me outro PM". A Constituição permite isso. O resultado das eleições aplica-se ao partido, não se aplica ao PM, que não foi eleito.

Belmiro de Azevedo diz que estamos perante um caso de regência...
É uma boa metáfora. O próprio Santana Lopes sente isso, considerando as vezes que repete que é legítimo, que é o partido mais votado, que era presidente da Câmara, e pela forma como já desafiou o presidente da República. O PS, na sua melhor tradição, só quer a cabeça de ministros, embora diga que o Governo é ilegítimo. Dentro do próprio PSD houve muita gente que pôs em causa a solução, o que também aumenta a ilegitimidade.

O congresso do PSD, em Novembro, poderá legitimar Pedro Santana Lopes?
Acho que não. Santana Lopes terá que viver com este défice de legitimidade até ao fim do mandato - se o mandato chegar ao fim. E como ele tem instinto político, estou convencido que, a partir daqui, vai tentar demonstrar que está a ser vítima de perseguição dos partidos, do Presidente, das instituições, dos seus adversários dentro do PSD. Pode precipitar a dissolução.

A sua vitimização poderá colher a simpatia do eleitorado?
Há, actualmente, na população, um sentimento muito avesso a esta solução política e a este governo - aliás, já em relação ao anterior. Um sentimento muito azedo que não passa só por razões económicas. A herança deste Governo é desagradável para muita gente. O facto de Santana Lopes ter andado no futebol, nas noites, nas discotecas, nas câmaras, na imprensa, na televisão, faz dele um senhor que está sempre a querer derrubar quem está, e a querer preparar-se para chegar a qualquer sítio. Não faz dele um homem com ponderação para estar depois de chegar. Não sabe o que quer fazer. Não sabe gerir. Pede aos ministros para gerirem o melhor possível.

José Sócrates, o novo secretário-geral do PS, poderá ser uma alternativa?
Não tenho muitas expectativas em relação ao PS daqui para a frente. Não senti uma força determinada e programática. José Sócrates e algumas pessoas da equipa dele foram quase mecânicos na utilização de "clichés", a começar pelas "Novas Fronteiras". Dizer que são uma homenagem a John Kennedy é um disparate. As novas fronteiras de Kennedy referiam-se às fronteiras da pobreza, da intolerância. Numa altura em que a sociedade europeia e a portuguesa luta contra as fronteiras, há um senhor que vai pôr novas fronteiras. As fronteiras separam. Depois, o lado muito bem comportado de Sócrates, tudo cuidadosamente feito, com a música, o sítio, a posição, a forma, a cor, o design.

António Guterres também começou com uma imagem semelhante...
Guterres conseguiu em quatro anos o inesperado: ganhou tudo o que havia para ganhar em Portugal. Até ter ido embora daquela maneira. Não era previsível aquela fuga tão descarada.

É por este sucessivo abandono de cargos que fala num regime democrático senil?
Não é senilidade. Os dirigentes políticos só se dão conta do estado grave em que vivemos quando chegam ao Governo. O discurso da oposição, seja esta, seja a anterior, é ilimitadamente optimista. Tudo é possível. É possível gastar mais dinheiro, aumentar as pensões, os vencimentos, a função pública. Chegam ao poder e as coisas alteram-se rapidamente. As promessas de Durão Barroso mudaram radicalmente depois de ter sido eleito. Guterres fez algo muito parecido: só se deu conta nas vésperas da sua derrota autárquica - caso único na Europa, do estado do país. Quer dizer que o debate público é desfasado da realidade; é dominado pela demagogia. Grande parte dos media têm a informação fabricada. Hoje devem estar a receber recados todos os dias.

A coligação CDS/PSD faz sentido no futuro?
Não sei se sobrevive. A coligação tem duas experiências negativas: a europeia e a açoriana. No PSD vão surgir muitas vozes a contrariar a dinâmica coligacionista. Mas sem coligação não chegam lá. Esta Direita parece-me muito instável do ponto de vista político e programático. Pode haver uma pressão no sentido de fazer um só partido de Direita liberal, quebrando o PSD ao meio - algo que está no código genético há muito tempo -, o que não será vantajoso. A grande vitória política de Cavaco Silva foi ter eliminado a fractura dentro do PSD. Não creio que Santana Lopes seja capaz disso. Imagino que ele tenha vocação para reforçar o PSD da Direita.

Que papel está destinado ao próximo PR: um papel mais forte na condução política ou menos interveniente?
A minha preferência era que a evolução fosse de cariz parlamentar. A minha previsão não é a minha preferência. A situação política e económica não vai melhorar nos próximos dois anos. Os factores de descontentamento vão aumentar. Não vejo que algum dos partidos esteja disponível para, responsavelmente, diminuir a demagogia. O próximo PR acabará por ser mais intervencionista, acentuando o carácter presidencialista.

Seria capaz de colocar o lugar de PR no seu horizonte?
Não. Estou retirado da vida política definitivamente. Tem a ver com a minha idade, com o que quero escrever, estudar, publicar. Fui convidado pela RTP para fazer a continuação dos estudos sobre a situação social em Portugal, transpondo-os para programas televisivos. Dá-me mais prazer fazer isto do que regressar à vida política.

Deixou de considerar a sua impaciência para a vida política um defeito?
Não. Mas a vida política exige certos atributos pessoais, que não tenho. O mais importante na política é saber estar no sítio certo, o que não é um acaso. Apesar da minha visão céptica sobre os destinos mediáticos da política portuguesa, sou incapaz de dizer frases como: "a política é o pior da humanidade". Não é verdade. É o melhor. Todas as qualidades humanas estão lá. Não deixo de escrever sobre política porque me interessa mesmo. Consegui foi interessar-me sem me interessar estar na vida política.

É outra forma de estar activo?
Mentalmente activo, sim. Não estou na vida política activa, por ter tomado uma decisão racional, ou porque me fartei. Fui derrotado. O que tentei desempenhar em determinados momentos falhou. A primeira derrota com Mário Soares, em 1977/78. Depois de ter feito o que fizemos, na reforma agrária e da política agrícola, ele alterou a sua táctica, para o ano seguinte, que era contrária da minha.

Mas o tempo deu-lhe razão...
De que vale ter razão 20 anos depois? Na vida política não serve para nada.

Depois disso ainda criou o movimento dos Reformadores...
Algumas das ideias defendidas pelos reformadores de então fizeram caminho. A revisão da Constituição, a presença acrescida do Estado na vida social, uma presença muito reduzida do Estado na vida económica, a privatização das actividades económicas, isto fez caminho, ainda que com protagonistas diferentes.

Ou seja, verdadeiramente não foi um derrotado. Sente que chegou antes do tempo?
É possível, mas não tenho medo da palavra derrota. A ideia mais nobre de uma reforma agrária é tirar a quem tem mais para dar a quem tem menos. O meu destino, na altura, foi impedir que um grupo limitado do PCP, e do seu sindicato do Alentejo, ficassem proprietários de um milhão e meio de hectares. Mas a reforma agrária e a revolução política no Alentejo tinham de tal maneira dividido a sociedade que já não era possível. Cheguei a más horas, fiz uma reforma ao contrário do que devia ser, e finalmente fui desautorizado pelo chefe de Governo, que era líder do partido de que eu era membro. Saí meses depois do PS, sendo que voltei sete anos depois. E voltei a sair.

"Universidade não é um direito"

Há 400 mil alunos no Ensino Superior, o que significa que se massificou. A Carta de Bolonha, a ser aprovada, aproxima-nos ou afasta-nos do nível da União Europeia?
A melhor intenção da Carta de Bolonha é permitir a circulação de estudantes, de professores, nos centros de investigação. A mentalidade democrática acha que ela existe para uniformizar a universidade institucional, e isso dará cabo das melhores intenções, porque irá destruir a autonomia de cada instituição. Quanto à massificação, não acho que a universidade seja um direito. Deve ir para a universidade quem souber, quem quiser e quem puder. O estudante precisa de aprender a investigar, a raciocinar, e tem que cumprir os seus deveres. Isto é, fazer o curso de quatro anos, em quatro ou cinco. E não passear eternamente nos corredores, como fez até agora. A lei das prescrições existe desde 86, mas em duzentas e tal escolas, só três a aplicam.

Que ensino deve ser um direito de todos?
A escolaridade obrigatória. A partir daí, é mérito. Uma universidade à qual toda a gente tem direito nunca desempenhará as suas funções de vanguarda da ciência. Acaba por não fazer ciência; faz ensino.O mais importante para se ser bom cientista é ter cultura geral, saber pensar e saber estudar. Não é ter diplomas profissionais.Infelizmente, é mais um caso de demagogia em Portugal. Agora vão-se criar duas espécies de universidades, para dar o título.Todos os politécnicos querem ser universidades, o que quer dizer que não haverá boas universidades, nem bons politécnicos. É a eterna doença do sistema educativo português: uniformiza em vez de permitir que cada escola tenha a sua organização.

Essa autonomia, adaptada às escolas secundárias, poderia evitar os atrasos na colocação dos professores?
Claro. O facto mais infame da vida política portuguesa recente foi a colocação dos professores. Cheguei a ficar céptico em relação à incapacidade de reacção dos portugueses. Estão anestesiados.O que aconteceu é absolutamente selvagem. Não conheço nenhum sítio do mundo onde isto possa acontecer. Creio que uma das causas do infortúnio deste Governo será isto, porque deixa uma mossa que não se apaga.

Acredita na reforma da universidade?
Não tenho ilusões. Nem os governos nem os reitores o farão. A minha esperança é que um Governo aceite que cada universidade tem o seu próprio modelo de gestão. E que, ao lado de uma universidade onde contratam o director, só aceitam doutorados, não aceitam assistentes, e onde os professores não faltam, haja uma que gosta mais da bandalheira. Ao lado de uma universidade que se quer especializar na investigação, haja uma que quer fazer ensino de massas. Se houver universidades autónomas, acredito que possa haver universidades boas e excelentes. Reforma global não acredito.

Passará a haver universidades de primeira e de segunda?
E de terceira. Nos melhores países do mundo é assim.

"Manipulação é tão nefasta quanto a censura"

O espaço público de informação tem suscitado alguns casos polémicos.Estamos na iminência de voltar à censura?
Por causa da opinião pública e de uma parte importante da classe jornalística, não acredito que haja censura. Mas suspeito que uma das prioridades do actual Governo, por se sentir ele próprio diminuído na sua legitimidade, seja concentrar a informação, manipulá-la por todos os meios, desde a sua sonegação até à compra de pessoas, e à chantagem com empregos. Tenho informação não comprovada em que há casos de manipulação na informação.

A manipulação é tão nefasta como a censura?
É. Mas não é igual. Defendo a ideia de um jornal com uma linha política - política, não partidária , sendo que é melhor ter do que não ter. Quando não tem, tem mas não mostra. Quando tem e afirma é melhor. Só é censura quando o jornal não advoga a linha política e depois altera o que o jornalista escreveu sem que haja modelo de referência.

Concorda com o ministro Rui Gomes da Silva que, ouvido pela AACS, falou de uma cabala montada pela comunicação social contra o Governo?
É espantoso. O natural seria que se demitisse imediatamente a seguir. O que disse sobre a democracia, a liberdade de expressão, o contraditório é tão boçal, que é de um homem que não sabe o que está a fazer. Armar-se em vítima só pode ser inspiração do primeiro-ministro.

Perfil
Idade: 62 anos
Naturalidade: Foz do Douro, Porto
Formação: Doutorado em Sociologia pela Universidade de Genebra, Suíça
Percurso político: Foi deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República. Foi secretário de Estado do Comércio, ministro do Comércio e Turismo, ministro da Agricultura e Pescas
Trabalho: Sociólogo, investigador, professor universitário em Lisboa, e cronista semanal do diário "Público".
Paixão: Douro e fotografia
Viagens: De estudo: Argélia, Guiné-Bissau, Oxford, Angola, Bruxelas, Açores. Exílio político: de 1963 a 1974 viveu em Genebra, na Suíça.
Prémio Montaigne: Ana Espírito Santo, cientista política, licenciada pelo ISCTE, é a figura escolhida por António Barreto para estudar durante um ano, na Alemanha. A concessão de uma bolsa de estudos, distribuída por 920 euros mensais, está consagrada no prémio Montaigne, atribuído desde 1968, no valor de 20 mil euros.

terça-feira, outubro 19, 2004

José Luís Borga

'Estar na televisão não renova a Igreja,
mas dá uma achega"



As televisões disputaram-no. Ele poderia não ter sido padre, mas, assegura, "seria sempre um comunicador". José Luís Borga, o sacerdote que pôs o país a cantar "Põe a mão na mão do teu Senhor da Galileia", tem uma utopia: "Se pudesse, ninguém faria abortos". A progressiva legalização dos comportamentos sociais incomoda-o. "A homossexualidade passou de perversão a doença; e daí a opção. Qualquer dia é uma obrigação". Diz que não a julga, mas também não a entende. Como não entende o Vaticano, que desconhece se "será um mal necessário, ou um serviço preciso". Cobra 4000 euros por concerto, cachet que partilha com a comunidade."A Bíblia pede um décimo - eu dou metade".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 19 de Outubro de 2004)

As suas sucessivas aparições televisivas são uma tentativa de renovar a imagem da Igreja ou fruto de uma opção exclusivamente individual?
Não tomei a decisão de usar a televisão para passar uma imagem da Igreja. Estou perante uma oportunidade que estes meios raramente dão. E não dão a toda a gente. Deram-me a mim. Tenho a humildade de pensar que estar na televisão não renova a Igreja no sentido de ir ao essencial. Ela não fica enriquecida porque apareço; espero que não fique empobrecida. É mais uma achega.

Que leitura lhe merece a presença de três padres nos três programas da manhã? [José Cruz na TVI; Milícias na SIC]
O público alvo da manhã são pessoas reformadas, para quem a Igreja tem um peso significativo. As televisões vêem audiências e percebem o que é estar o padre Borga, ou não; estar uma cartomante, ou não. No início, houve uma certa disputa de mim. A RTP propôs-me exclusividade, e eu aceitei. As outras televisões foram ao encontro do mesmo.

Além da televisão, dá concertos. A que critério obedece a sua agenda?
Primeiro, cortando muitas horas ao sono. Segundo, dentro do possível do que me pedem, tento responder afirmativamente. Terceiro, sendo capaz de fazer entender às pessoas que não sou mendigo, nem escravo, nem dependente dessa situação. Vou porque é bom ir; nunca irei porque preciso de ir. Se me pedem para dar um espectáculo onde estão seis mil pessoas, dificilmente direi que não. Se me pedem para ir a um larzinho, onde estão meia dúzia de velhinhos, terei mais dificuldade em dar prioridade a isso. Faço uma gestão entre qualidade e quantidade. Sou prioritariamente pároco; raramente colido com a minha dimensão de responsável por uma comunidade. Este ano já fiz mais de 70 espectáculos; não me posso queixar muito.

Que destino dá aos 4000 euros que cobra por espectáculo?
Só metade do que ganho fica para mim. A Bíblia pede um décimo; eu dou metade. Nunca fui a lado nenhum para ganhar dinheiro, nem deixei de ir por não ganhar. Tento fazer uma gestão de tudo o que tenho, de forma primeira a que não viva para isso; segunda, que viva apesar disso; terceira, que haja muita gente a ganhar com isso. A minha Igreja tem sido a destinatária, porque houve obras. Se tenho ajudado tanta gente, mau seria que andasse a pedir para a minha paróquia.

Lida bem com a popularidade?
É a minha cruz. (risos) Sou bastante desconcertante. Às vezes, até fico com pena das pessoas. Reconheço que é cansativo, inoportuno, quero passar discreto e não consigo. Mas sou sobejamente grato para pensar que isso acontece porque as pessoas gostam de mim, e são gratas por aquilo que sou. Não tenho o direito de ser frio. E não me preocupa porque sou um homem livre, faço tudo às claras, ninguém depende de mim. O meu celibato dá uma boa ajuda. Lido com a simplicidade e a gratidão que isto supõe e exige. E com os pés no chão, porque tudo é efémero.

O seu protagonismo não pode ser confundido com uma certa falta de humildade que lhe é exigida?
Pode. Mas quem dirá da humildade, ou não, terá que ser a própria pessoa, e os seus amigos. Somos facilmente avaliados por gente que nem sabemos que existe, e que se acha no direito de avaliar só porque conhece uma parcela. Haver gente que fica eufórica ou angustiada porque estou na televisão, não me é particularmente incomodativo. Agora, se tenho um colega sacerdote ou bispo, isso sim. As pessoas são um bocadinho adolescentes nestas matérias: somos óptimos se os servimos; na primeira vez que dissermos que não, revêm logo o nosso estatuto. Passamos de bestial besta com muita facilidade.

Que avaliação fez da proibição do Governo ao não deixar atracar em território português, o "barco do aborto"?
O aborto é um acto desumano e desumanizante. Fazer disto uma indústria, é pior a emenda do que o soneto. A política não soube lidar com isto, e foi lamentável. Quer-se uma ordem jurídica baseada em princípios de dignidade da pessoa humana, mas só se dá tiros nos pés. Ainda bem que não houve gente da Igreja no cais a pedir para o barco não atracar; seria lamentável.

Defendia a vinda do barco?
Tanto me faz. A realidade, em Portugal, está bem pior do que no barco. Já começo a temer que se legalize a pedofilia. Desde que se faça em condições de higiene, as crianças não se queixem, tenham subsídio depois, e haja rastreio higiénico aos clientes. Já vi legalizar tanta coisa! Estamos na miséria? Citando Kierkgaard, "venham os poetas falar daquilo que é belo". Não temos que morrer todos no esterco da vida. Tenho uma utopia: se a pessoa pudesse, nunca faria aborto.

Numa altura em que se esperava que o Vaticano revisse algumas posições consideradas mais retrógradas, é emitido um documento a reprovar a homossexualidade...
Não é só a igreja que é contra a hossexualidade. Não há nenhuma religião, a não ser que depois haja interpretações pastorais, que diga que essa opção é de ordem divina. Sou da maior compreensão face à homossexualidade, mas sou, também, da maior questão perante ela. Honestamente, acho que masculino e feminino são complementares no masculino e no feminino. Esta visão tem milhares de anos, e não estará assim tão errada.

A homossexualidade não é propriamente recente...
Pois não. Passou de perversão a doença. Agora já não é doença, é opção. Qualquer dia é uma obrigação.

Ou seja, evita julgar, mas não aceita?
Se alguém me vier dizer que tem tendência homossexual, gostava de lhe dizer que está enganado. Não aceito como opção igual a outra qualquer. Tenho dificuldade em compreender. Quer mais uma perversão? Ter relações com animais. Até aqui, ainda achamos que é perversão, mas qualquer dia passa a ser natural casar com cães e gatos. Posso parecer exagerado, mas não sei se sou. Há 40 anos, se dissesse que a homossexualidade era opção, estaria a ser tão exagerado como pareço estar a ser agora. É preciso não esquecer que a sexualidade tem associada a ideia de fecundidade.

Concorda que a imensa riqueza do Vaticano pode afastar as pessoas da Igreja?
Concordo, claro. Como a minha.O poder está sempre associado a uma dimensão visível. A riqueza do Vaticano é algo que não se pode hipotecar. Fui prior no mosteiro sistersiense, numa comunidade paupérrima, em que até para mudar lâmpadas tinhamos que fazer peditórios. O IPPAR gastou lá milhões na restauração. É um património tal, que deixá-lo deteriorar-se, era um crime contra nós proprios, a Historia e a memória. O Vaticano vai vender aquilo a quem? Ao Bill Gates? Ao Estado?

O património do Vaticano não é só arquitectónico...
O que importa não é o que temos, é o que damos. O orçamento do Vaticano, em relação a cidades como Lisboa ou Alemanha, não é comparável. O serviço que presta à comunidade, a grandeza espiritual que tem, a quantidade de organismos de apoio aos mais pobres, à investigação, não tem comparação. A maior pobreza é acharmos que é mau os outros terem. Vivi num seminário, em Santarém, uma casa estupenda. Parece muito rica, mas viver lá é quase um castigo. Meu rico andarzinho no Entroncamento! Só o arranjo do telhado daquilo dava para comprar três andares iguais ao meu.

E todo o mistério que envolve o Vaticano: a moeda própria, os livros a que ninguém tem acesso, não o inquieta?
Tenho mais que fazer do que estar preocupado com o Vaticano. Não é dos sítios mais fascinantes da vida. Não sei se é um mal necessário, ou um serviço preciso. Tem muitas virtudes, mas terá também limitações. Faz parte do mistério disto tudo. Não sou admirador do Vaticano; isso não sou, até porque há muita coisa que não sei como funciona. Os que sabem não ficam muito edificados, os que não sabem passam muito bem sem isso. Pertenço ao segundo plano.

Que reacção lhe suscita o mediatismo de padres como o controverso Mário de Oliveira, autor de livros como "Fátima nunca mais"?
Gostava de ver nele um homem feliz. E lamento que a cruz dele seja esta Igreja. Concordo com algumas coisas que diz. Aliás, razão é coisa que não lhe falta. Mas acho lamentável que se faça passar por servidor da Igreja que abomina. É um fio ao qual tem conseguido ser tão fiel, durante todos estes anos, que até o admiro por isso. Honestamente, se achasse da Igreja o que ele acha, já tinha ido embora.

Ele não é caso único.
Pois não. A igreja ainda não sabe lidar bem com estes casos. Ele pode ser um doente, mas é um irmão no sacerdócio. Era talvez possível, entre os colegas, ir pondo água na fervura. Gostava de o ver mais acompanhado. Sou um espectador dele como toda a gente. Expõe-se muito. Acho que ele não é feliz. Mas, provavelmente, ele acha o mesmo de mim.

O celibato é um dossier que a igreja devia rever?
Está sempre a ser revisto, desde que foi instituído pelo próprio Jesus Cristo. É matéria que vai continuar a ser discutida. Mas será sempre um tesouro complicado de nos desfazermos. O tesouro tem sido, nestes séculos, inestimável. Não poderíamos apresentar serviços de qualidade, de testemunho, de autenticidade evangélica, sem esta opção. Mas vai sofrer alterações. O sacerdócio ministerial, até há pouco tempo, estava vedado a não celibatários; neste momento, já há diáconos permanentes que são casados. Lamento que um sacerdote que por causa do celibato deixa de exercer, não seja, pelo menos, colocado no diaconato. O celibato tem que ser uma opção da felicidade, e se alguém não é feliz porque é celibatário deve deixar de o ser. Mas não deve ser reduzido ao grau zero.

Perfil

Idade 40 anos
Trabalho Sacerdote e cantor
Família Um irmão gémeo, um irmão padre
Filme "A missão"
Música "Canção da cidade nova"
Livro "Principezinho"
Cidade Entroncamento
Qualidade Coerência
Defeito Arrogância

Confissões

Fascínio pela comunicação
"Um padre que só dá para padre, geralmente não dá para padre", defende José Luís Borga, que é padre, mas poderia "encontrar-se em muitas outras facetas, todas ligadas à comunicação". Diz que não perdeu "tudo aquilo que era capaz de fazer", mas reconhece: "Na vida, quando queremos agarrar tudo, acabamos por não agarrar nada".

Primeira missa sem o pai
Quando realizou, pela primeira vez, a Eucaristia - "o que mais me agrada fazer na vida, é ser ministro da presença de Cristo numa Comunidade" -, o pai não esteve presente. Havia sido internado. Como agora. "Foi, provavelmente, o momento mais difícil dessa missa", confessa, emocionado só com a recordação. "Estava rodeado de gente que me quer bem, mas nos momentos de maior intimidade, a ausência das pessoas que, se pudessem, estariam presentes, acaba por ser mais marcante. E dolorosa. E sei o quanto para o meu pai teria sido significativo estar ali". Padre Borga aprendeu com a ausência. "Foi uma antecâmara para a minha capacidade de ver mais longe".

Lágrima fácil. E nó na garganta
Comove-se mais do que gostaria. E surpreende-se com isso de todas as vezes. "Há pessoas que, só de me lembrar o que representam na minha vida, me põem um bocado perturbado e com um nó na garganta". Como reage à emoção? "Peço desculpa e passo à frente. Sou sobejamente racional para perceber que tenho direito aos meus sentimentos".